quarta-feira, 6 de maio de 2009

Francis Ponge

DA ÁGUA

Mais abaixo que eu, sempre mais abaixo que eu se encontra a água. É sempre com os olhos baixos que a vejo. Como o solo, como uma parte do solo, como uma modificação do solo.
É branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: a gravidade, dispondo de meios excepcionais para satisfazer esse vício: contornando, transpassando, erodindo, filtrando.
No interior dela própria esse vício também atua: desaba sem cessar, renuncia a cada momento a qualquer forma, só tende a se humilhar, deita-se de bruços no chão, quase cadáver, como os monges de certas ordens. Sempre mais abaixo: tal parece ser sua divisa: o contrário de excelsior.

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Poder-se-ia quase dizer que a água é louca, por causa dessa histérica necessidade de só obedecer à sua gravidade, que a possui como uma idéia fixa.
Certamente, tudo no mundo conhece essa necessidade que sempre e em todos os lugares deve ser satisfeita. Este armário, por exemplo, se mostra muito cabeçudo em seu desejo de aderir ao chão e, se ele se encontra um dia em equilíbrio instável, preferirá danificar-se a infringi-lo. Mas enfim, numa certa medida, joga com a gravidade, desafia-a não desaba em todas as suas partes, sua cornija, suas molduras não se conformam. Existe nele uma resistência em prol de sua personalidade e de sua forma.
LÍQUIDO é por definição aquilo que prefere obedecer à gravidade a manter sua forma, aquilo que recusa qualquer forma para obedecer à sua gravidade. E que perde toda sua compostura por causa dessa idéia fixa, desse escrúpulo doentio. Desse vício, que o torna rápido, precipitado ou estagnado; amorfo ou feroz, amorfo e feroz, feroz terebrante, por exemplo; ardiloso, filtrante, contornante; de tal modo que dele se pode fazer o que se quiser, e conduzir a água em canos para a seguir fazê-la jorrar verticalmente a fim de gozar enfim de sua maneira de se abismar em chuva: uma verdadeira escrava.
...No entanto, o Sol e a Lua invejam essa influência exclusiva, e procuram exercer-se sobre ela quando está propiciando a tomada de grandes extensões, sobretudo se está ali em estado de menor resistência, dispersa em poças rasas. O Sol então, arrecada um maior tributo. Força-a a um ciclismo perpétuo, trata-a como um esquilo em sua roda.

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A água me escapa...me escorre entre os dedos. E olhe lá! Isso nem é tão limpo (quanto uma lagartixa ou uma rã): ficam-me nas mãos traços, manchas, relativamente demorados para secar ou que se devem enxugar. Ela me escapa e, no entanto, me marca, e quase nada posso fazer.
Ideologicamente é a mesma coisa: ela me escapa, escapa a qualquer definição, mas deixa em meu espírito e neste papel traços, manchas informes.

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Inquietude da água: sensível à menor mudança da declividade. Pulando as escadas com ambos os pés ao mesmo tempo. Brincalhona, pueril de obediência, voltando imediatamente quando a chamamos mudando a inclinação para o lado de cá.


trad. Igacio Antonio Neis e Michel Peterson

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